terça-feira, 15 de março de 2011

"Tempo de delicadeza"

 
 Affonso Romano de Sant’Anna
 Sei que as pessoas estão pulando na jugular umas das outras.
 Sei que viver está cada vez mais dificultoso.
 Mas talvez por isto mesmo ou talvez devido a esse maio azulzinho, a esse outono fora e dentro de mim, o fato é que o tema da delicadeza começou a se infiltrar, digamos, delicadamente nesta crônica, varando os tiroteios, os seqüestros, as palavras ásperas e os gestos grosseiros que ocorrem nas esquinas da televisão e do cinema com a vida.
Talvez devesse lançar um manifesto pela delicadeza. Drummond dizia: “Sejamos pornográficos, docemente pornográficos”. Parece que aceitaram exageradamente seu convite, e a coisa acabou em “grosseiramente pornográficos”. Por isto, é necessário reverter poeticamente a situação e com Vinicius de Moraes ou Rubem Braga dizer em tom de elegia ipanemense:  
Meus amigos, meus irmãos, sejamos delicados, urgentemente delicados.
Com a delicadeza de São Francisco, se pudermos.
Com a delicadeza rija de Gandhi, se quisermos.
Já a delicadeza guerrilheira de Guevara era, convenhamos, discutível. Mas mesmo ele que andou fuzilando pessoas por aí, também andou dizendo: “Endurecer, sem jamais perder a ternura”.
Essa a contradição do ser humano. Vejam o nosso sedutor e exemplar Vinicius, que há vinte anos nos deixou, delicadamente.
Era um profissional da delicadeza. Naquela sua pungente “Elegia ao primeiro amigo”, nos dizia:  
‘‘Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha alma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento.
Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água.
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo.’’

Está aí: porque somos ferozes precisamos ser delicados. Os que não puderem ser puramente delicados, que o sejam ferozmente delicados.
Houve um tempo em que se era delicado. E Rimbaud, que aos dezessete anos já tinha feito sua obra poética, é quem disse um dia: ‘‘Por delicadeza, eu perdi minha vida’’.
Intrigante isto. 
Há pessoas que perdem lugar na fila, por delicadeza. Outras, até o emprego. Há as que perdem o amor por amorosa delicadeza. Sim, há casos de pessoas que até perderam a vida, por pura delicadeza. Não é certamente o caso de Rimbaud, que se meteu em crimes e contrabandos na África. O que ele perdeu foi a poesia. E isto é igualmente grave. 
Confesso que, buscando programas de televisão para escapar da opressão cotidiana, volta e meia acabo dando em filmes ingleses do século passado. Mais que as verdes paisagens, que o elegante guarda-roupa, fico ali é escutando palavras educadíssimas e gestos elegantemente nobres. Não é que entre as personagens não haja as pérfidas, as perversas. Mas os ingleses têm uma maneira tão suave, tão fina de ser cruéis, que parece um privilégio sofrer nas mãos deles.
Tudo é questão de estilo.
Aquele detestável Bukowski, sendo abominável, no entanto, num poema delicado dizia que gostava dos gatos, porque os gatos tinham estilo. É isso. É necessário, com certa presteza, recuperar o estilo felino da delicadeza.
 A delicadeza não é só uma categoria ética. Alguém deveria lançar um manifesto apregoando que a delicadeza é uma categoria estética.
 Ah, quem nos dera a delicadeza pueril de algumas árias de Mozart. A delicadeza luminosa dos quadros dos pintores flamengos, de um Vermeer, por exemplo. A delicadeza repousante das garrafas nas naturezas-mortas de Morandi. Na verdade, carecemos da delicadeza dos adágios.
 Vivemos numa época em que nos filmes americanos os amantes se amam violentamente, e em vez de sussurrarem “I love you” arremetem um virótico “Fuck you”.
Sei que alguém vai dizer que com delicadeza não se tira um MST com sua foice e fúria dos prédios ocupados. Mas quem poderá negar que o poder tem sido igualmente indelicado com os pobres desse país há quinhentos anos?
Penso nos grandes delicados da história. Deveriam começar a fazer filmes, encenar peças sobre os memoráveis delicados. Vejam o Marechal Rondon. Militar e, no entanto, como se fora um místico oriental, cunhou aquela expressão que pautou o seu contato com os índios brasileiros: ‘‘Morrer se preciso for, matar nunca’’.
A historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna anda fazendo entre nós o elogio da lentidão, denunciando a ferocidade da cultura da velocidade. É bom pensar nisto. Pela pressa de viver as pessoas estão esquecendo de viver. Estão todos apressadíssimos indo a lugar nenhum.
Curioso, a delicadeza tem a ver com a lentidão. A violência tem a ver com a velocidade. E outro dia topei com um livro, A descoberta da lentidão, onde Sten Nadolny faz a biografia do navegador John Franklin, que vivia pesquisando o Pólo Norte. Era lento em aprender as coisas na escola, mas quando aprendia algo o fazia com mais profundidade que os demais.
Sei que vão dizer: a burocracia, o trânsito, os salários, a polícia, as injustiças, a corrupção e o governo, não nos deixam ser delicados.
   E eu não sei?
Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E se necessário for, cruelmente delicados.


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